Dia 18 de Maio e a Copa do Mundo: o que há para celebrar?

 

Corria o ano de 2009. Eu trabalhava como coordenador nacional do Programa CLAVES Brasil quando participei de um evento na Câmara Municipal de São Paulo para tratar do enfrentamento e prevenção da violência contra crianças e adolescentes. Naquela ocasião uma das falas ficou à cargo da Dra. Maria Amélia Azevedo, precursora e referência nacional nessa temática.

Havia uma grande expectativa por aquela apresentação, e como era de se esperar a fala da Dra. Maria Amélia foi impactante, mas não do modo como muitos esperavam, principalmente os vereadores presentes. Logo de início ela afirmou: “a violência contra a criança e o adolescente começa aqui nessa casa.” Ela seguiu denunciando com enorme indignação a quantia irrisória de dinheiro investido pela prefeitura em prevenção e atendimento das vítimas de violência doméstica e exploração sexual comercial, a inexistência de um sistema integrado de notificação, o sucateamento dos conselhos tutelares, dentre outros assuntos que geraram um enorme, mas necessário, desconforto entre os presentes.

Por ocasião de mais um 18 de Maio, Dia Nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes, e há um mês da Copa do Mundo as palavras da Dra. Maria Amélia me vieram à minha mente.

A disparidade entre o que foi gasto na preparação do Mundial e o montante investido na infância e adolescência é gigantesca. Informações recentes e proveniente do próprio governo federal dão conta que os custos da Copa do Mundo giram em torno de R$ 25,6 bilhões. Isso representa um número quase dez vezes maior do que o orçamento inicial.

Há nessa disparidade histórica, ressaltada recentemente pela Copa do Mundo, uma relação perversa entre o poder econômico e a violação dos direitos humanos. Sabe-se, por exemplo, que os canteiros de obras dos estádios que sediarão o Mundial da FIFA serviram como ponto para a exploração sexual de crianças de até 12 anos de idade. Mesmo sendo o Brasil referência mundial com relação a uma legislação específica destinada para proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes, o ECA, e estando há alguns anos sob os holofotes da imprensa internacional, não conseguiu fiscalizar adequadamente sequer os principais palcos da grande festa que calcula-se, será assistida por aproximadamente 3,6 bilhões de pessoas em todo o mundo. Tampouco a FIFA sinalizou interesse em participar das discussões sobre o tema da exploração nos arredores dos estádios. Afinal, eles estão em um negócio, e não dispostos a contribuir para resolver os problemas sociais dos países por eles temporariamente colonizados.

Não se trata aqui da preocupação do Brasil em passar vergonha diante do mundo, mas de não se envergonhar diante de si mesmo, ao se dar conta de que, para sobreviver, meninas e meninos que deveriam estar estudando em escolas descentes tem os seus corpos e dignidade violados por alguns minutos em troca de alguns reais. Mas como diriam dois meninos pobres de outrora, agora adultos enriquecidos graças ao futebol e inúmeros contratos de publicidade, “não se faz Copa do Mundo com escolas”.

Não há como generalizar e dizer que nada foi feito. O Brasil realmente avançou desde a criação do ECA. Sistemas de notificação e denúncia foram criados, assim como os conselhos nacional, estaduais e municipais da criança e do adolescente, conselhos tutelares, varas da infância e da juventude, equipes multidisciplinares de atendimento, acordos e convênios com organizações nacionais e internacionais de defesa de direitos, meios de arrecadação de impostos voltados para a infância e adolescência, etc. E é justamente pelas sementes que foram plantadas nos últimos 20 anos que vejo como inadmissível que crianças e adolescentes continuem a serem comercializados neste país. Eu, como tantos outros profissionais, acreditamos na potencialidade do ECA, desde que ele seja plenamente e constantemente colocado em prática, não somente por este ou aquele governo, mas por toda a sociedade, como preconiza o estatuto.

Mas a julgar pela atual e abominável prática da exploração sexual comercial próxima ou distante dos estádios – não importa –, e pela ineficiência do poder público na tomada de providências urgentes, parece haver mais orgulho em sediar um mundial e atrair turistas, atraindo bilhões de reais para o setor privado, do que a honra de contribuir para a erradicação de da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes deste país.

Trabalhando há quase 10 anos com a prevenção de diversos tipos de violência contra crianças e adolescentes, tenho plena consciência que a tarefa de sua erradicação é extremamente complexa. O problema envolve múltiplos fatores, como falta de educação sobre a sexualidade, frágeis laços familiares, incapacidade dos adultos em lidar com suas frustrações ou fantasias, incapacidade de ver a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e não como objetos, cultura do consumo, machismo, sexismo, questões econômicas (no caso da exploração sexual comercial), dentre outros. A erradicação, se possível, será lenta e processual, e deverá envolver toda a sociedade em diversas frentes de atuação.

O sistema da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, em última instância, faz daqueles que nele estejam envolvidos todos vítimas. Tanto a criança e o adolescente explorados sexualmente, a família pouco informada (ou tantas vezes conivente), os/as aliciadores/as, facilitadores/as, clientes, bem como todos/as aqueles/as que silenciam para a realidade da exploração, estão inseridos no ciclo da violência. Vítimas e vitimizadores são escravos de um sistema perverso que desumaniza a todos. Para romper com esse ciclo é preciso reconhecer sua existência, indignar-se contra ele, agir apropriadamente, seja na prevenção, no apoio às vítimas, na denúncia dos envolvidos para que sejam devidamente responsabilizados, e na cobrança constante das autoridades para que realizem seu papel, principalmente no que se refere à prevenção. Quando não lutamos para romper o ciclo da violência, contribuímos para sustentá-lo.

 

Naquele dia de 2009, a Dra. Maria Amélia Azevedo terminou sua desconcertante fala repetindo o que escreveu durante décadas e que motivou e continua a motivar diversos profissionais, mas que parece continuar passando ao largo dos administradores públicos: a questão da violência contra a criança e o adolescente é um tema de orçamento público.

Falar de investimentos maciços em educação, saúde, cultura, etc., já se tornou um lugar comum nesse país   Mas imagine o impacto que R4 25,6 bilhões bem investidos somente na prevenção e no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes teria a curto e médio prazo. Não se pode afirmar que com esse dinheiro se garantiria a erradicação do problema, pois há inúmeros fatores subjacentes a ele, como citei anteriormente. A questão é se existe vontade política para tal.

Que este 18 de Maio também sirva para nos conscientizar que nenhum candidato à cargo público deverá ter nossa atenção sem antes dizer o quanto pretende investir na infância e na adolescência, tanto para promovê-los enquanto seres humanos, quanto para protegê-los de situações de risco.

 

Alexandre Gonçalves

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