Democracia asfixiada?

O ainda senador Magno Malta, pastor e cantor gospel, homem forte do presidente eleito, é o relator de um projeto de ampliação da lei antiterrorismo (272/2016), proposta pelo Senador Lasier Martins (PDT/RS). A lei em vigor (13.260/2016), inócua na prática mas criada pelo governo Dilma por pressão do Grupo de Ação Financeira Internacional e do Conselho de Segurança da ONU para coibir o financiamento de organizações terroristas, teria supostamente o mérito de fazer uma diferenciação entre atos de terrorismo e manifestações sociais. Exatamente por isso, o § 2º afirma que a mesma “não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.”

É esse parágrafo que salvaguardaria a livre manifestação de indivíduos e coletivos. No entanto, nas entrelinhas da ampliação proposta, abrem-se brechas para criminalizar manifestações políticas e mobilizações da sociedade civil, pois a inclusão dos incisos VI e VII podem coincidir com atos ilícitos praticados em determinados protestos ou manifestações, ficando à mercê do promotor ou juiz a interpretação e o enquadro como terrorismo de qualquer tipo de mobilização. Na prática, se uma manifestação estudantil contra o aumento da tarifa do transporte, por exemplo, resultar em atos de vandalismo ou ameaça à vida (mesmo que não causados por integrantes do movimento reivindicatório), qualquer um que participar dessa manifestação poderá ser enquadrado na lei antiterrorismo, especialmente seus organizadores. Bastará a prisão por policiais, acusação por promotores e condenação por juízes bem ou mal intencionados. À época de sua sanção, a lei antiterrorismo foi duramente criticada, tanto pela esquerda quanto pela direita.

Enquanto relator da ampliação, Magno Malta defende a anulação de alguns vetos da então presidente Dilma para incluir a criminalização de ações com motivação política e ideológica. Deste modo, um ato de terrorismo não consistirá apenas na prática de atos de indivíduos ou grupos por razões de “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião“, como está na lei em vigor, mas também por motivação política, ideológica e social, que atingirá em cheio movimentos como o MST e o MTST.  Malta se posicionou contrário à realização de audiências públicas propostas pela oposição para debater a ampliação da lei pois queria aprová-la de imediato. Assim, o presidente eleito não terá que se desgastar publicamente com esse assunto em seu mandato, embora já tenha dito publicamente que quer botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil.” 

Na mesma linha, Eduardo Bolsonaro, cristão e membro da Igreja Batista, apresentou projeto de lei (PL 5358/2016) para criminalizar a apologia ao comunismo (sem mencionar as variantes dessa ideologia, como a chinesa, de livre mercado em algumas áreas). Ainda que seu projeto defenda “a livre manifestação pacífica de qualquer natureza, desde que respeitadas as normas legais para a manutenção da ordem pública” —  que supostamente evidencia o caráter democrático da lei — , a questão é: quem definirá o que é ou não pacífico ou o que configura desordem pública? Estamos cansados de ver a PM dispersando manifestações originalmente pacíficas, mas que se descontrolaram justamente por causa do uso excessivo de força policial ou de táticas que visam o revide. Ou ainda a manipulação da opinião pública, levada a acreditar que ações isoladas de vandalismo de alguns grupos ditam o tom de todas as manifestações reivindicatórias de direitos ou protestos contra políticas danosas.

Tanto Magno Malta quanto Eduardo Bolsonaro, cristãos que são, ignoram a história do protestantismo, principalmente da discussão levantada pela Reforma Radical sobre as liberdades de consciência, pensamento e expressão, consagradas séculos mais tarde como direito pelo Iluminismo e asseguradas em sociedades democráticas. Se essas liberdades não estão claramente asseguradas, embarcamos num paternalismo estatal ou num maniqueísmo obtuso, abrindo-se os caminhos para o autoritarismo. Em uma democracia, é essencial que o contraditório tenha seu espaço e que a sociedade civil e os movimentos sociais sejam livres para protestar e manifestar seus interesses, sem a tutela ou a intervenção de um estado autoritário travestido de democrático.

A exemplo da importância do contraditório, os próprios eleitores de Bolsonaro se manifestaram recentemente contra uma possível indicação de Alberto Fraga (DEM-DF) —  condenado pelo TJ do Distrito Federal a pouco mais de 4 anos de prisão em regime semiaberto por corrupção —  como articulador político no congresso. E foi justamente essa pressão popular que fez Bolsonaro afastar uma ideia antes tida como certa e divulgada publicamente por vídeo (o que não quer dizer que Fraga se afastará definitivamente da articulação política do futuro governo). Bolsonaro também foi cobrado, por seus próprios eleitores, sobre a fusão entre os ministérios da Agricultura e Meio Ambiente (decisão igualmente abortada). De qualquer forma, é o ativismo crítico (interno e externo), que aumenta a responsabilidade dos governantes pela prestação de contas sobre seus mandatos.

Todo governo que pretende “botar um ponto final em todos os ativismos no Brasil”, como quer o presidente eleito, mostra-se totalitário, acrítico e arbitrário porque, antes mesmo de esmagar a capacidade de mobilização da oposição, busca imputar a ela os piores efeitos possíveis sobre a vida social, como classificá-la como “terrorista”. Junta-se à isso a desqualificação das manifestações políticas em universidades públicas e o desejo de  criminalizar prévia e absolutamente alguns movimentos sociais. A ampliação da lei antiterrorismo coloca em risco o direito fundamental de liberdade de expressão, inclusive de associação, e disfarça o desejo do futuro governo de asfixiar a oposição.

Alexandre Gonçalves

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